segunda-feira, 7 de maio de 2018

Rapunzel às Avessas, um conto de Leandro Dupré Cardoso – finalista do Prêmio Strix 2018

Salve, medievalistas e leitores de fantasia!

Se você acompanha o Cena Medieval, talvez já tenha lido por aqui sobre o livro Baladas Medievais, uma das coletâneas de contos lançadas em 2017 pela editora Andross, e sobre o Prêmio Strix, que elege todo ano o melhor conto de cada uma das coletâneas.


As listas com os contos finalistas de cada coletânea foram publicadas no mês passado e, para prestigiar os autores do Baladas Medievais, a coletânea que mais nos interessa, vamos publicar aqui no site, durante esta semana, os cinco contos do livro indicados ao Strix 2018, começando com Rapunzel às Avessas, de Leandro Dupré Cardoso.

A ideia desta série de posts que estamos começando hoje é que vocês, leitores do Cena Medieval, tenham a oportunidade de conhecer os contos finalistas – o meu inclusive, pois este Skald que vos fala publicou um conto que acabou sendo escolhido como um dos cinco indicados ao prêmio. ;)


O Baladas Medievais é uma coletânea de contos de autores nacionais, que contem vinte e quatro contos de temática medievalista, a maioria passeando pela fantasia medieval tolkieniana, mas alguns abordando também temáticas mais históricas.

Destes vinte e quatro contos originalmente publicados, dez passaram para a segunda fase, de acordo com votação feita pelos próprios autores. E destes dez, cinco foram selecionados por um juri técnico como finalistas:

Rapunzel às avessas, de Leadro Dupré Cardoso
A marca, de Gi Pezzolato
Recompensa, de Skald Rafael
As Palavras de um homem, de Ton Botticelli
Um bom homem, de Claudia Mina

Dentre estes cinco indicados, um receberá o Strix! A entrega do prêmio acontecerá durante no evento Livros em Pauta, no dia 06 de Outubro, no qual também haverá o lançamento das coletâneas deste ano da editora Andross (cujos contos, portanto, concorrerão ao Strix do ano que vem).

A corujinha cobiçada por todos os autores que publicam com a Andross
Então mesmo que você ainda não tenha lido nenhum dos contos do livro Baladas Medievais, poderá ler os cinco finalistas aqui no Cena Medieval, e quem sabe comparecer ao evento para acompanhar a premiação em primeira mão e torcer pelo seu favorito, além de prestigiar autores medievalistas nacionais!

Agora, sem mais enrolação, vamos ao primeiro conto dessa lista...


Rapunzel às avessas

A minha amada foi de minh’alma o alvorecer.
Tão límpida, tão pálida, tão plácida,
Sua beleza para mim é fugaz,
Resplandecente como uma lâmina.
Honrarei tantos tributos ao seu mórbido esplendor
Assim como
Verti lágrimas diante de tamanho horror.
Garanto que nunca
Mais sorri em venerável fulgor.
Meu coração em brasas
Arde e fervilha como a vida
Enquanto o pútrido sangue escorre.

Sempre canto isso quando estou para baixo, meio deprimido. As paredes me sufocam, o desespero ameaça tomar conta. Às vezes eu fico assim, pensando no mundo lá fora, mas logo melhora. Basta lembrar que não existem inimigos, tanto de carne quanto de pedra, capazes de interferir no destino de um Zulnepar.

O lema de minha casa é impossível de esquecer. Tão intenso e tão profundo tal qual a cantiga que agora há pouco entoei.

É uma homenagem à mamãe que papai escreveu. E se naturalmente eu já admiro esse grande homem com todas as minhas forças, com essa canção é que a minha devoção fica completa.

Eu ainda era menino quando o reino da família Zulnepar prosperava como nunca. As colheitas abundavam, e nem mesmo a proliferação de pestes, que eram devastadoras para outros povos, não assustavam os privilegiados habitantes do reino. Vivíamos num verdadeiro paraíso muralhado do qual só nós possuíamos as chaves. Ou era o que pensávamos…

Mouros! Os malditos mouros foram capazes de perturbar a nossa harmonia quando invadiram o reino de Zulnepar da mesma forma que haviam feito com os senhorios vizinhos.

Nem gosto de entrar muito em detalhes sobre isso. Como as nossas vidas poderiam ser diferentes hoje…

Aqueles desgraçados não tiveram perdão: passaram o fio da espada por nossos servos mais dedicados e cavaleiros mais habilidosos. E, por fim, assassinaram mamãe e meus irmãos também. Eu era o próximo.

Se estou aqui hoje é graças ao papai que, liderando uma última defensiva apesar das inestimáveis baixas, conseguiu expulsar de vez esses hereges daqui. E papai foi milagrosamente capaz de ainda me resgatar das garras do inimigo a tempo.

Depois disso o reino nunca mais foi o mesmo. De ousado e inconsequente, papai passou a ser cauteloso e temeroso de todas as suas ações. Inclusive quando a oportuna vingança se desenhou com a formação das Cruzadas contra os árabes, quando eu prontamente declarei o meu desejo de me tornar um soldado da igreja:

— Nem em um milhão de anos!

— Como assim?! Eles destruíram Zulnepar, meu pai!

— E vão continuar destruindo caso te matem e ninguém da família possa mais assumir o reino.

— Inimigos não podem interferir no meu caminho!

— Correto, inimigos não. Mas eu posso!

E foi assim que eu, Palneruz Zulnepar, acabei trancafiado sozinho neste largo salão de festas dentro do castelo principal do reino. De início foi um choque terrível, fiquei louco com a decisão do papai: esperneava contra os portões, fazia um escarcéu de berros histéricos. E nada.

Gastava tantas forças para nulos resultados. Felizmente as fartas refeições que eu recebia me ajudavam a revigorar e também a, gradualmente, digerir as peculiaridades do meu novo lar.

Por mais estranho que pareça, passei a gostar dali. Nunca me faltava nada: odaliscas sensuais, banquetes refinados, vinhos encomendados de feudos distantes. Era só aguardar os horários de visita de papai que ele sempre vinha acompanhado com uma agradável surpresa, fosse ela uma adega renovada ou uma virgem deslumbrante.

O problema sempre foi o tempo entre as visitas. Tenho que preenchê-lo criando canções por caros pergaminhos que ainda me permitem compor os monótonos acordes dedilhados por meu alaúde tão solitário quanto o dono. Qual o sentido de tocar para o nada?

Eu sei que papai é um anjo. Sei que ele só quer zelar pela minha segurança e faz de tudo para que eu seja feliz ao seu lado, onde não haja o menor risco de perder o seu único filho restante. Mas às vezes sinto que este vazio salão de festas não é muito diferente de uma claustrofóbica masmorra. E a vontade de sair retorna.

“Palneruz, Palneruz, jogue suas tranças!”, absurdamente grita a minha mente desvairada como se os meus cabelos raspados pudessem servir de corda para a minha escapatória desta cela elevada. Este era o tamanho da minha violenta obsessão. A crise está voltando, cada vez mais forte, mais intensa…

Ei, espera, que barulho é esse? As trancas…

— Divertiu-se bastante hoje, filhão?

— Ah, papai, que bom que o senhor nunca se atrasa! Mais um presente?

Eu até perdi a noção do tempo, esqueci completamente da virgem fresquinha preparada para hoje, o meu presente. E quanto bom gosto meu pai tinha. Como eu adorava esses caprichados presentes de trajes tão finos que não ocultam nada daquelas verdadeiras esculturas curvilíneas. Quem é que está preocupado em fugir quando ganha incentivos assim, praticamente caídos do céu?

— Nossa, como pude me esquecer do vinho! — Exasperou-se papai. — Segure um pouco as pontas, eu já volto.

E me fechou junto àquela beleza ainda arredia. No começo, todas são assim. Era preciso chegar chegando, mostrar logo quem era o príncipe daquele castelo e…

— Seu nojento!!! — Olha só, a danadinha simplesmente me estapeou bem forte no rosto. Interessante, adoro uma gatinha selvagem. — Por que sempre obedece a ele, Palneruz?

— Ah, deixa de papo e vamos…

— Pare aí mesmo!

Caramba, o que essa doida está pensando? Foi só eu me aproximar um pouco que ela sacou um punhal não sei de onde!

— Não tente gracinhas. Acredite, eu faço isso porque gosto de você, Palneruz — disse ela enquanto mantinha a arma empunhada em sinal de defesa. Cada louca que me aparece… — Seu pai está acabando com toda Zulnepar, está fora de si. A devoção pelo seu querido herdeiro o tornou severo e tirano. Você precisa sair, precisa se libertar! Você não vê nada por estar trancado aqui. Seu pai não pode mais degolar cada mulher que dorme com você só para que não se apaixone por nenhuma. Você precisa ultrapassar as próprias muralhas, vencer os seus inimigos internos. E é por isso que eu te imploro: mate-o! Mate o rei sem piedade! Eu não tenho força suficiente para isso, mas sei que você tem, Palneruz! Liberte Zulnepar!

E me estendeu o punhal. Mas eu queria uma noite de diversão, não um punhal! Se bem que, raciocinando um pouco melhor… Era uma oportunidade única... Ser rei… Uma indecente e tentadora proposta. O sonho de escapar nunca me pareceu tão real: bastava manejar a afiada lâmina e pronto, eu estava livre. Talvez fugir com essa minha misteriosa salvadora, casar-me com ela, ter meus próprios filhos. Enfim, decidir os rumos da minha própria vida. Para isso bastava só…

Meu Deus, que susto: eram as trancas novamente.

— Sou eu outra vez, meu filho! Espero não atrapalhar nada…

O portão se abriu pesarosamente. Era a minha deixa.

Olhares assustados de todos os lados. Nossas cicatrizes de guerra vibram. Essa era a minha Cruzada particular. Era agora ou nunca!

E eu enfiei o punhal. Firme, sem titubeio. Até o cabo.

Vitória?

De imediato pairou somente a dúvida. Desamparo, insegurança, medo. Mas logo um lampejo:

Enquanto o pútrido sangue escorre,
Arde e fervilha como a vida.
Meu coração em brasas
Mais sorri em venerável fulgor.
Garanto que nunca
Verti lágrimas diante de tamanho horror
Assim como
Honrarei tantos tributos ao seu mórbido esplendor.
Resplandecente como uma lâmina,
Sua beleza para mim é fugaz.
Tão límpida, tão pálida, tão plácida.
A minha amada foi de minh’alma o alvorecer.

Sim, claro, como eu pude suspeitar! Papai sempre dizia que nenhuma mulher era confiável. Apenas mamãe foi uma doce exceção. De resto, eram todas dotadas de sedutoras línguas mentirosas e amaldiçoadas. Graças a Deus eu fui iluminado a tempo! O corpo daquela víbora jazia sem vida, frígida pelo chão. Tragédia merecida. E, de um trato, não resisti em oferecer um sincero abraço para o meu verdadeiro salvador:

— Muito obrigado por tudo, papai. Eu te amo.

— Muito bem, rapaz, muito bem. Bom garoto… — e, comovidamente orgulhoso, papai abraçou-me mais forte.

Alguns minutos depois eu estava de novo trancado para curtir em privacidade essa grande conquista. Afinal, eu não havia permitido que inimigos interferissem no meu destino. Tinha acabado de me tornar um verdadeiro Zulnepar.

O rei do meu próprio lar imperturbável.


Leandro Dupré Cardoso é paulistano, administrador e escritor. É autor dos livros de ficção O Pinheiro e a semente da discórdia A era i-Racional, entre outros. Foi indicado aos prêmios Strix 2016 e 2017 pela participação nas antologias Céus de Chumbo e Baladas Medievais.

Contato: leandroduprecardoso@gmail.com
Livros disponíveis em: www.clubedeautores.com.br


Imagem de capa deste post por: Renata Saito


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